quarta-feira, 27 de abril de 2011

Notícia - Ruínas atômicas

Edifício do reator nuclear - Huemul

Em uma ilha perdida na Patagônia, escombros enterram o sonho nuclear de um general e um cientista maluco. E hoje, sessenta anos depois, pesquisadores argentinos produzem reatores que seriam o orgulho de Perón.

A lancha avançou com velocidade sobre as ondas no lago Nahuel Huapi. As águas azul-cobalto foram agitadas por um vento gelado, que afastou as nuvens carregadas de chuva. As encostas de Huemul apareceram à frente, no meio da neblina fraca. Neste ponto, a profundidade do lago vai além dos 450 metros. Chegando ao píer, desembarcamos em uma trilha desabitada. Há mais de sessenta anos, essa pequena ilha a dez minutos de bote de San Carlos de Bariloche, na Patagônia argentina, foi protagonista de uma história de espionagem tecnológica que tem todos os ingredientes de um filme do gênero. Um general, um cientista (louco? trapaceiro? gênio incompreendido?) à procura do Santo Graal da fusão nuclear, maquinários gigantes, segredos e mistérios enterrados sob os escombros de edifícios um dia gigantescos.

No início da década de 50, Huemul funcionou, ao menos por três anos, como a sede dos experimentos nucleares do então presidente argentino, o general Juan Domingo Perón. Após o fim da Segunda Guerra, enquanto americanos e russos faziam grandes compras no supermercado dos cientistas nazistas, a Argentina de Perón, o populista admirador de Mussolini e Hitler, tentava conseguir alguma vantagem. Em Bariloche, é fácil encontrar quem saiba algo sobre a história. Mas impossível achar alguém que saiba de tudo. “Em Huemul se faziam experiências estranhas. Era o laboratório atômico de Perón”, diz o taxista. “O chefe era aquele alemán que rodava em um Cadillac branco. À noite, a ilha era iluminada como se fosse de dia e ouvíamos barulhos suspeitos. Tínhamos medo de que tudo pudesse explodir de um momento ao outro”, diz o taxista. O tal alemán era o cientista Ronald Richter. E, na realidade, era austríaco.


EL ALEMÁN
Depois de uma viagem por toda a Europa, Richter chegou a Buenos Aires em agosto de 1948, convidado por outro imigrante, Kurt Tank, este sim alemão, que havia sido engenheiro-chefe da Focke-Wulf Flugzeugbau, empresa germânica que produzia aviões militares e civis durante a Segunda Guerra. Em seu desembarque, Richter foi apresentado a Perón e pode expor suas teorias sobre a fusão nuclear e despertar a ambição do general. Naqueles anos, o presidente queria transformar a Argentina em uma grande potência. E produzir energia atômica barata para concorrer com gigantes mundiais seria um ótimo caminho. A fusão, um processo que libera muito mais energia do que a fissão dos átomos, usada nas bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki, não estava perto de ser usada em um processo controlado de produção de energia. E tão pouco está hoje. Reza a lenda que Perón disse “vá em frente”, sem hesitar, quando Richter pediu para construir seu laboratório maluco. Para abrigá-lo, encontrou, depois de sobrevoar a Argentina de um extremo ao outro, a ilha de Huemul.

Em pouco tempo, Richter coordenou a construção de prédios para laboratórios, de depósitos e de uma central elétrica para fornecer a imensa energia necessária aos experimentos. Comprou maquinários caríssimos — em 1951, adquiriu da Holanda um acelerador de partículas Philips que custou, na época, cerca de um milhão de dólares. Anos depois, Richter contou que Evita, a lendária esposa de Perón, não simpatizava com ele. “Aquela mulher nunca gostou da minha presença, não entendo o porquê.”

Evita Perón visitou Huemul para conhecer uma das mais imponentes estruturas do projeto: o reator atômico, formado por um cilindro de cimento maciço de 12 metros de altura por 12 metros de diâmetro. No livro El Secreto Atomico de Huemul (O Segredo Atômico de Huemul, sem edição no Brasil), único escrito sobre o tema, o físico nuclear argentino Mario Mariscotti conta que o reator era um volume de cimento, pedra britada e areia, com uma câmera cilíndrica interna. “O volume total equivalia a quase 20 mil sacos de cimento. Foram necessárias 72 horas de trabalho ininterrupto para a construção”, disse em seu livro. Quando os andaimes foram retirados, Richter inspecionou a obra e decidiu que se trocassem os tubos de ferro por outros de amianto. Quando os técnicos explicaram que era impossível, o alemán deu de ombros: então o reator deveria ser demolido para construir um novo. Dessa vez, debaixo da terra, escavando dentro da rocha. A confusão geral e todas as consultas técnicas não mudaram a opinião do cientista. No final, Perón deu a ordem de demolição.

Iniciada dessa forma, a aventura tecnoperonista dirigida por Richter se revelou, nos dois anos seguintes, uma montanha-russa de desmandos temperados por anúncios sensacionalistas, denúncias de sabotagem e a inimizade da comunidade científica local antiperonista, que considerava Richter apenas um aventureiro. Em março de 1951, o presidente da Argentina surpreendeu o mundo declarando que reações termonucleares haviam sido obtidas em Huemul: era o anúncio da fusão nuclear controlada para produção de energia.




O laboratório de Richter onde teria acontecido a fusão nuclear. As dinamites usadas pelo exército para explodi-lo danificaram apenas o teto. A sala central, com paredes de cimento de um metro de espessura, manteve-se intacta .


A casa do cientista metralhada pelos militares



BOMBA!
As reações ao anúncio do presidente foram imediatas e céticas. O diretor, à época, do Instituto de Física Teórica da Universidade de Viena, Hans Thirring, equacionou seu ponto de vista. “Há 50% de probabilidade de que Perón tenha acreditado nos delírios de um sonhador, ainda que honesto; 40% de que seja vítima de um enganador; 9% de que Perón e Richter estejam tentando enganar o mundo juntos e 1% de chance de que a fusão nu-clear tenha sido realmente feita.”

Os episódios seguintes da história, longa e complicada, não trazem resposta unívoca ao teorema de Thirring. O fato é que o projeto Huemul terminou dois anos depois, com a chegada da comissão enviada por Perón para atestar os resultados. O jovem físico argentino José Antonio Balseiro foi interrompido em seus estudos na Universidade de Manchester, Inglaterra, para fazer parte da comissão em 1952. Balseiro demonstrou, com dados à mão, que a fusão não tinha acontecido. No final de seu relatório, permitiu-se um aceno de ironia. “Minha experiência sugere que o comportamento de Richter está longe de ser exemplo da excentricidade dos homens da ciência”, dizia. Em poucas palavras, ele não seria mais um cientista louco. Mas apenas um louco.

Os laboratórios de Huemul foram, então, rapidamente desativados antes que Richter tenha podido — ou querido, como defendem seus fãs — revelar os detalhes de seu suposto feito. O alemán isolou-se em uma casa simples em Buenos Aires, onde morreu em 1991. Com o golpe de estado que obrigou Perón a exilar-se, em 1955, a ilha tornou-se símbolo da má administração pública peronista: os investimentos perdidos são estimados em US$ 300 milhões e os prédios serviram ao exército para a prática de explosões.


SONHO NUCLEAR, 2
A vegetação invade o que um dia foi a casa de Richter, com as janelas destruídas por rajadas de metralhadora. O que sobrou do sonho nu-clear em Huemul parece vingança póstuma do alemán. Uma explosão com dinamite destruiu o teto do laboratório onde teria acontecido a fusão nuclear, mas seu coração — uma sala de 30 metros quadrados com paredes de cimento de um metro de espessura — ficou intacto. No meio da sala, como um altar dedicado a uma divindade tecnológica, há um bloco de cimento maciço gravado com séries paralelas de trilhos metálicos. A obra termina em uma escadaria que leva ao ponto mais alto da ilha, um mirante, onde Richter construiu seu escritório.

Daquele local, mais de sessenta anos depois, em dias claros, se pode avistar a torre do reator nuclear do Centro Atômico de Bariloche, do lado oposto do lago. Fundado após o fracasso do projeto de Huemul, em 1955, o centro possui algumas máquinas de Richter: seus laboratórios foram esvaziados antes de serem explodidos e os maquinários transferidos ao novo centro, no continente. No mesmo edifício, fica o Instituto Balseiro, que forma físicos e engenheiros nucleares. Seu primeiro diretor (de quem herdou o nome) foi o cientista argentino que derrotou com dados os supostos avanços nucleares do alemán.

As duas instituições em Bariloche, ligadas à Comissão Nacional de Energia Atômica da Argentina, são, em parte, a fênix da história: nasceram das cinzas de um fracasso tecnológico gigantesco, mas vêm dando resultados brilhantes. A Investigación Aplicada (Invap), instituição pública de pesquisas nucleares e aeroespaciais ligada ao Instituto Balseiro, recentemente ganhou uma licitação de 300 milhões de euros para fabricar um reator nuclear na Holanda. Em 2007, a organização — que atualmente constrói um satélite para a Nasa — já havia exportado um reator para a Austrália. Evidências de que, embora Richter não tenha feito da Argentina uma potência atômica no pós-guerra, o país se desenvolveu na área. “A experiência de Richter não foi inútil. Ele plantou a semente da pesquisa e colocou a Argentina, um país principalmente agrícola, no grupo seleto das nações atômicas”, afirma Mariscotti. De qualquer modo, a imagem do cientista austríaco segue controversa, inclusive para o autor do livro sobre a história. “Se eu não tivesse preparo científico, teria acreditado nele. Richter era habilidoso com as palavras.”



Laboratório na Invap onde os cientistas constroem a estrutura de um satélite sob encomenda da Nasa





Retirado de : http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,ERT220827-17773,00.html

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